Conversa Aberta sobre Ciência Cidadã e Saúde Planetária: A proposta do Grupo de Trabalho Interdisciplinar

Relatoria: Daniela Vianna* e Maria Clara Peres**

O encontro “Conversa Aberta sobre Ciência Cidadã e Saúde Planetária: A proposta do Grupo de Trabalho Interdisciplinar”, ocorrido em 27 de julho de 2023, foi um evento significativo para discutir os objetivos e aplicações práticas da Ciência Cidadã no âmbito do campo de pesquisa e do movimento da Saúde Planetária no Brasil. Conduzido pela Profa. Natalia Pirani Ghilardi-Lopes, coordenadora do GTI de Ciência Cidadã do Saúde Planetária Brasil (SPBr), professora associada da Universidade Federal do ABC e membro e fundadora da Rede Brasileira de Ciência Cidadã, o encontro virtual contou com a participação do Prof. António Mauro Saraiva, coordenador do SPBr, da Dra. Sheina Koffler (pós-doutoranda na UNIFESP), e dos pesquisadores do IB-USP Beatriz Laham e Luiz Gustavo Arruda.

A Profa. Natalia iniciou o evento apresentando os objetivos gerais e específicos do GTI de Ciência Cidadã para a Saúde Planetária. Ela também apresentou os conceitos e aplicações da Ciência Cidadã, destacando que o saber é também uma instância de poder e que, por isso, o acesso ao conhecimento e a autonomia das pessoas em sistemas de cooperação e na busca por soluções é tão relevante. Explicou que o conceito de ciência cidadã faz parte do movimento de ciência aberta, democratizando o acesso a informações e a dados para a compreensão e a produção de conhecimento. No Brasil, diversas pessoas trabalham com Ciência Cidadã, que envolve participação púbica na produção de novos conhecimentos científicos. Disse ainda que o termo “Ciência Cidadã” não é sinônimo de de “divulgação científica”, “educação ambiental”, “educação científica” ou “extensão universitária”, apesar destes termos apresentarem sinergias em determinados contextos.

Debateu-se a compreensão de como as ações humanas afetam os sistemas do planeta e, consequentemente, influenciam o bem-estar humano. Diversos exemplos, como a poluição, o desmatamento e o uso excessivo de recursos naturais, foram apresentados como fatores que impactam a saúde do planeta e das pessoas.

O aumento da expectativa de vida e da redução da mortalidade infantil, apesar de representarem avanços pós-guerra, geraram também maiores impactos nos ambientes habitados por humanos. Ficou claro que esses avanços resultam de um custo ambiental significativo que precisa ser repensado.

Dentro desse contexto, houve uma reflexão profunda sobre o papel da humanidade no mundo. Questões de desigualdade e injustiça foram levantadas, destacando a necessidade de considerar valores humanos na busca por soluções. A ciência cidadã foi apontada como um processo crucial para aproximar as pessoas do entendimento sobre os problemas e contribuir para soluções de forma colaborativa, relacionadas à sociedade civil.

Estabeleceu-se as correlações entre a Ciência Cidadã e os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e com a conceituação de desenvolvimento sustentável como a interseção entre equidade social, conservação ambiental e viabilidade econômica, apresentando gráfico adaptado de Sérgio Buarque – Construindo o Desenvolvimento Local Sustentável. Estabeleceu, ainda, a conexão com as fronteiras sociais e planetárias apresentadas pelo modelo da economia doughnut, desenvolvido pela economista Kate Raworth, da Universidade de Oxford. Por esse conceito, Kate recomenda que fiquemos no que se chama de “espaço seguro e justo para a humanidade”, uma área entre o atendimento universal a padrões mínimos de acesso a recursos que compõem a base social e o teto ecológico cuja exploração acima da capacidade de regeneração do planeta gera desequilíbrio aos ecossistemas e riscos à saúde (veja gráfico).

Em sua exposição, a Profa. Natalia ressaltou que a Ciência Cidadã é intrinsecamente participativa, com levantamento de dados também participativo, baseada no estabelecimento de parcerias importantes para promover educação científica e coparticipação na elaboração de políticas públicas. Segundo ela, há na literatura pelo menos 34 diferentes definições de Ciência Cidadã, mas que basicamente este processo consiste em uma parceria entre cientistas e pessoas interessadas em ciência. Elas são engajadas nas diferentes etapas do processo científico, desde definições de questões de pesquisa, estabelecimento de objetivos, busca por informações, desenvolvimento de hipóteses, planejamento de estudos, coletas de dados, análises de dados e de amostras, interpretação dos resultados, obtenção de conclusões e disseminação/divulgação dos resultados e conclusões obtidos.

A pesquisadora apresentou, por fim, os dez princípios que norteiam a Ciência Cidadã, de acordo com a European Citizen Science Association. São eles, transcritos a seguir:

  • Os projetos de Ciência Cidadã envolvem ativamente os cidadãos nas atividades científicas, o que gera novo conhecimento e compreensão;
  • Os projetos de Ciência Cidadã produzem genuínos resultados científicos;
  • Tanto os cientistas profissionais quanto os cientistas cidadãos são beneficiados por sua participação nos projetos de Ciência Cidadã;
  • Os cidadãos cientistas podem, caso queiram, participar em várias etapas do processo científico;
  • Os cidadãos cientistas recebem feedback do projeto;
  • A Ciência Cidadã é considerada como abordagem de investigação como qualquer outra, com limitações e vieses que devem ser considerados e controlados;
  • Dados e metadados resultantes de projetos de Ciência Cidadã são tornados públicos e sempre que possível publicados em um formato de acesso livre;
  • A contribuição dos cidadãos cientistas é reconhecida publicamente nos resultados dos projetos e nas publicações;
  • Os programas de Ciência Cidadã são avaliados pelos seus resultados científicos, pela qualidade dos dados, pela experiência para os participantes e pela abrangência dos impactos sociais e políticos;
  • Os responsáveis de projetos de Ciência Cidadã levam em consideração questões legais e éticas.

Como Elaborar um Projeto de Ciência Cidadã? – Aspectos práticos

Na sequência, a Dra. Sheina Koffler (pós-doutoranda na UNIFESP), membro do GTI de Ciência Cidadã do SPBr,  abordou aspectos relativos à elaboração de projetos de Ciência Cidadã, ressaltando a importância da produção de dados no Brasil e mencionando a ausência de uma fórmula pronta, destacando a diversidade de projetos existentes.

A pesquisadora mostrou que a Ciência Cidadã é um campo em franca expansão no mundo. Entre os principais desafios, citou a interdisciplinaridade, o engajamento do público – levando em conta seus interesses e motivações – e o rigor científico. Após apresentar guias práticos sobre como elaborar projetos de Ciência Cidadã, e anunciar que será lançado um guia brasileiro pela Rede Brasileira de Ciência Cidadã (RBCC), Sheina ressaltou que, devido à diversidade de projetos, há uma dificuldade de criação de diretrizes comuns para pesquisas neste campo.

Segundo ela, antes mesmo de se iniciar um projeto de Ciência Cidadã é necessário considerar, definir e refletir previamente sobre aspectos norteadores, tais como: objetivos e motivações; público-alvo; abordagens metodológicas; complexidade; grau de participação do público nas etapas do processo científico; e duração e recursos do projeto. Sheina detalhou cada um desses pontos em sua apresentação, bem como apresentou as etapas práticas para o planejamento, a implementação e a análise e disseminação dos dados.

No planejamento, de acordo com Sheina, é necessário definir a) a formação da equipe; b) a elaboração do protocolo de pesquisa; c) a produção de materiais de apoio educacionais; d) o esclarecimento sobre as questões legais e éticas; e e) o planejamento das avaliações formativa (na etapa de implementação) e somativa (dos impactos, a serem avaliados na etapa de análise e disseminação).

Já na implementação, as etapas práticas envolvem a divulgação e o recrutamento dos participantes; o treinamento deles e a disponibilização de dados. Por fim, a análise dos dados requer a etapa de “limpeza” (triagem) dos mesmos, e a disseminação pressupõe ampla divulgação dos resultados da pesquisa.

Detetives da Comida – pesquisa em ação

Os pesquisadores Luis Gustavo Arruda e Beatriz Sinelli Laham, ambos discentes do Instituto de Biociências (IB) da USP, apresentaram o projeto Detetives da Comida. Baseado na Ciência Cidadã, o projeto visa promover o monitoramento da segurança alimentar e do combate à fome nas escolas brasileiras, com a participação cidadã na etapa de coleta e interpretação de dados. Para isso, possui uma formação de professores, materiais didáticos e cartilhas. O projeto também envolve estratégias de engajamento de outros cientistas e objetiva formar jovens mais conscientes e protagonistas na promoção da segurança alimentar e nutricional.

A justificativa para o projeto está associada ao aumento da fome no mundo, agravada ainda mais desde 2018, de acordo com Beatriz. Segundo ela, são necessárias informações confiáveis, que devem ser obtidas no âmbito das cidades, dos estados e do país para que ações efetivas sejam adotadas no combate à fome e à insegurança alimentar. Para isso, o engajamento coletivo na coleta de dados facilita e desonera o processo, e a Ciência Cidadã é facilitadora neste processo.

No projeto, os próprios alunos atuam como cientistas na coleta e análise de dados. A pergunta norteadora é a seguinte: “O que comemos e por que comemos o que comemos?”. Mais informações sobre o projeto estão disponíveis neste link.

Por fim, Marcella Seraphim falou sobre o aplicativo Do Pasto ao Prato, ressaltando estratégias de engajamento que envolvem formas de atrair o trabalho de outros cientistas e a necessidade de encontrar participantes com perfil ou estudos que tenham potencial para formação de uma rede capaz de atingir mais pessoas.

O evento foi marcado por discussões profundas, reflexões sobre o papel da Ciência Cidadã na sociedade e sobre o seu potencial para enfrentar desafios globais, como a crise ambiental e a insegurança alimentar. A seguir, confira um resumo dos principais temas debatidos.

 

  • Impacto humano no planeta: Foram discutidos os efeitos das ações humanas no meio ambiente, incluindo poluição, desmatamento e uso excessivo de recursos naturais. Esses fatores foram destacados como causas de danos à saúde do planeta e, por consequência, à saúde humana.
  • Desenvolvimento pós-guerra: Houve um destaque para os avanços no aumento da expectativa de vida e na redução da mortalidade infantil após guerras, mas também foi observado que esses avanços vêm com um custo ambiental maior, resultando em impactos nos ambientes habitados por humanos.
  • Papel da humanidade no mundo: Questões de desigualdade, injustiça e valores humanos foram trazidas à tona para refletir sobre o papel da humanidade no mundo e como a ciência cidadã pode ser parte da solução para os problemas enfrentados.
  • Ciência Cidadã: A Professora Natalia Ghilardi-Lopes explorou os conceitos e aplicações da ciência cidadã, enfatizando o acesso ao conhecimento e a autonomia das pessoas na produção de conhecimentos científicos em sistemas de cooperação. Foi destacado que a ciência cidadã faz parte do movimento de ciência aberta.
  • Princípios da Ciência Cidadã: Foram apresentados dez princípios fundamentais, incluindo o engajamento aberto dos cidadãos, a produção de resultados científicos genuínos, o feedback contínuo para os participantes das iniciativas e a análise de dados para avaliar impactos sociais e políticos dos projetos.
  • Sistemas Complexos e Cultura de Risco: Foram abordados os sistemas complexos que envolvem, entre outros, aspectos físicos e biológicos, destacando a incerteza e a ansiedade geradas pela incompreensão das pessoas sobre o funcionamento dos mesmos. A cultura de risco foi mencionada como fundamental para a percepção de situações de risco e autoproteção.
  • Desenvolvimento Sustentável e Fronteiras Planetárias: A noção de que algumas questões podem ser valorizadas em detrimento de outras no desenvolvimento sustentável foi trazida à tona. Fronteiras planetárias e o modelo donut de sustentabilidade foram indicados para ilustrar os limites de crescimento dentro de um ambiente saudável.
  • Elaboração de Projetos de Ciência Cidadã: Foram apresentadas reflexões sobre a criação de projetos de ciência cidadã, ressaltando a importância da produção de dados no Brasil e a diversidade de projetos existentes, sem uma fórmula pronta.
  • Monitoramento de Segurança Alimentar e Combate à Fome: Foram abordadas estratégias de monitoramento da segurança alimentar e como a ciência cidadã pode contribuir para enfrentar o aumento da fome no mundo, intensificada desde 2018.
  • Formação de Professores e Jovens Conscientes: Discussões sobre promoção de cursos de formação continuada para professores e a importância de formar jovens conscientes e protagonistas em temas como segurança alimentar, mudanças climáticas e ciência cidadã.
  • Engajamento de Outros Cientistas: Estratégias para atrair o trabalho de outros cientistas foram mencionadas, destacando a importância de encontrar participantes com perfil ou estudos que tenham potencial para formar uma rede de colaboração.

* Daniela Vianna – jornalista e comunicadora climática, doutora em Ciências Ambientais (PROCAM/USP), pós-doutoranda do IEA-USP e coordenadora do GTI de Comunicação do Saúde Planetária Brasil (SPBr)

** Maria Clara Peres – estudante de Obstetrícia (EACH-USP) e estagiária do SPBr.