“Alimentos que não alimentam”, por Renata Simoni

“Nós criamos uma demanda insana por alimentos que não nos alimentam, com a justificativa de nos alimentarmos, e com isso adoecemos o planeta e a humanidade”. Essa frase, proferida por Juliana Tângari, diretora do Instituto Comida do Amanhã, marcou o tom dos debates do Painel 3 – “Sistemas alimentares: impactos na saúde, meio ambiente e influenciadores” do seminário “Saúde Planetária na América Latina: hora de agir!”, ocorrido em dezembro de 2020. O painel, organizado e moderado pelas Profas. Raquel Santiago, da Universidade Federal de Goiás, e Dirce Marchioni, do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, foi dividido em duas mesas de debates que exploraram de forma complementar as nuances políticas, econômicas, ambientais e sociais dos sistemas alimentares.

Na primeira mesa, intitulada “O papel dos sistemas alimentares na sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas”, Juliana Tângari apontou os custos ocultos e as falhas do sistema alimentar vigente como grandes desafios que o mundo enfrenta hoje para além da pandemia do Covid19. Segundo Tângari, que é advogada, mestre em Direito Civil, e ex-presidente do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio de Janeiro,  tais falhas incluem impactos sociais, violações dos direitos humanos, bem estar animal, entre outros, mas principalmente desnutrição, obesidade e mudanças climáticas. No relatório da Comissão de Obesidade do The Lancet de 2019, chamado “Sindemia Global”, considera-se que essas três pandemias, por compartilharem fatores comuns e atingirem grande parte da população mundial, formam uma sindemia. Tal definição é importante para que se adote soluções que passam pelo reconhecimento da interconexão entre elas. 

Diante desse cenário, existe um paradoxo. A produção agrícola e agropecuária não parou de crescer nos últimos anos, mas, mesmo assim, o mundo não conseguiu acabar com a má nutrição. Se por um lado há um volume crescente de produção de alimentos, por outro, estima-se que entre 690 e 750 milhões de pessoas passavam fome, em 2019, segundo a FAO. Outras 100 milhões deverão se somar a esse contingente devido à crise econômica e sanitária decorrente do Covid19. Como um terceiro componente, soma-se um exército de 650 milhões de pessoas obesas, em meio a dois bilhões de pessoas com excesso de peso, levando cerca de quatro milhões de pessoas a óbito por ano, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.

No Brasil, em 2014, comemorou-se a saída do país do mapa da fome, porém este ano, pela publicação do IBGE da Pesquisa de Orçamentos Familiares, atingimos mais de 10 milhões de pessoas em estado de fome, retornando ao mapa. 

A obesidade também segue crescendo – temos dois terços da população brasileira com excesso de peso, sendo um quarto da população adulta obesa. O relatório da FAO deste ano mostra que o mundo está fora das metas estipuladas para 2030, o que indica que não conseguiremos zerar a fome no tempo esperado, somando 3 bilhões de pessoas sem condições de se alimentar de forma saudável. “Ou o custo da alimentação está muito alto, ou as pessoas estão muito pobres”, alerta Tângari.

Para completar essa receita indigesta, existem os impactos climáticos provocados pelo sistema alimentar. A agropecuária, além de ser a maior ameaça à perda de biodiversidade no mundo, é responsável por cerca de ⅓ das emissões de GEE (gases de efeito estufa) globais, sendo que metade do volume é atribuída à criação de gado.

 

(Des)construção coletiva para a mudança

O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) aponta para o valor da mudança de dieta como uma opção de fato eficiente para conter a degradação ambiental e aumentar a segurança alimentar. Como essa mudança pode ser feita? Segundo Juliana Tângari, o primeiro passo é reconhecer que apenas parte do que comemos é uma decisão individual ou familiar. A maior parte dessa decisão é uma construção coletiva, moldada por nossas culturas e atividades políticas. “Nos tornarmos conscientes disso é a forma para criar a mudança”, afirma.

No projeto Comida do Amanhã, do qual é diretora, Juliana tem trabalhado a potência transformadora do consumo alimentar e das mudanças de dietas. Em 2019, realizaram o lançamento brasileiro, no Rio de Janeiro, do Relatório da Comissão do The Lancet sobre Dietas na Saúde Planetária. Isso motivou sua equipe a construir uma obra coletiva de receitas consideradas saudáveis e sustentáveis (livro “Isso Não é Apenas um Livro de Receitas”), disponível gratuitamente no site comidadoamanha.org

 

Educomunicação e Culinária na prática

No debate, ficou clara a importância da comunicação e da educação nessa mudança dos sistemas alimentares que se quer construir. Ariela Doctors, chefe de cozinha com experiência em tele-educação, contou como idealizou e tem conduzido o projeto Comida e Cultura. Segundo ela, os problemas do nosso tempo, mencionados por Tângari, são sistêmicos, interconectados e interdependentes, exigindo mudanças de paradigma e uma concepção holística e sistêmica na busca por soluções. 

“Para que haja uma mudança de comportamento, é necessário que se faça uma mudança de estrutura, que só é possível, segundo Peter Senge, se houver aprendizagem”, destaca Ariela. O Projeto Comida e Cultura traz aulas semanais para crianças sobre culinária no ensino infantil e fundamental em uma escola de São Paulo. Cozinhando, são abordados os processos produtivos e de procedência dos alimentos, a ancestralidade e a cultura do alimento, sua embalagem e rotulagem, seu descarte e desperdício. Tal abordagem, segundo ela, transforma a relação com o alimento e o consumo e abre espaço para refletirmos sobre nossas escolhas, com maior autonomia e liberdade. Mais informações sobre o projeto estão no site www.comidaecultura.com.

A Dra. Aline Carvalho Martins, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública e pesquisadora no Grupo Saúde Planetária, IEA/USP, também ressaltou a importância da comunicação, Ela coordena o projeto Sustentarea, que visa a troca de saberes com a comunidade sobre sistemas alimentares. O projeto, iniciado em 2012, teve como primeiro foco de atuação o elevado consumo de carne em São Paulo, que traz impactos na saúde das pessoas e do meio ambiente. Aline, durante seu mestrado, desenvolveu, junto com sua orientadora, Profa. Dirce Marchioni, o Projeto Segunda sem Carne na FSP, com o objetivo de fazer uma intervenção no Restaurante Universitário. Após um ano, percebeu que 40% das pessoas reduziram seu consumo de carne também fora da faculdade. Em 2016, foi então criado o Sustentarea, que hoje conta com 40 membros voluntários por todo o Brasil. Mais informações sobre o projeto estão disponíveis no site do programa: sustentarea.com.br.

 Já Profa. Dra. Thais Mauad, titular do Departamento de Patologia da Universidade de São Paulo e coordenadora do grupo de estudos de Agricultura Urbana, compartilhou sua experiência com o curso de Medicina Culinária da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). A horta da FMUSP, que existe desde 2013, serviu de inspiração para a criação do curso, em que os alunos são convidados a cozinhar. O Medicina Culinária é realizado em parceria com chefs de cozinha, nutricionistas e médicos, com o objetivo de trazer para a comunidade médica a importância da alimentação saudável e sustentável.

Por fim, Katiane Marques, que é estudante de Direito no Grupo de Estudos Afro-brasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB/UFRGS) e agente comunitária de saúde em Porto Alegre, contou como a comunicação ajuda na promoção da saúde, principalmente entre a população preta. Katiane traz um relato pessoal da Unidade de Saúde em que trabalha. Durante a pandemia, foi criado um blog e uma rádio via WhatsApp para compartilhar informações com os pacientes, sobre diversos assuntos, inclusive sobre alimentação saudável. “Esse trabalho tem sido muito produtivo dentro da comunidade onde atuo.”

Edição: Daniela Vianna

Card/Arte: Marcelo Marcelino

Confira a gravação com o painel completo neste link: https://www.youtube.com/watch?v=ZqpVHTAg240

Confira mais informações sobre as discussões do Painel 3, na mesa de debates sobre “Modos de Consumo Contemporâneos: perspectivas futuras”.

 

Links úteis:

Projeto Comida do Amanhã – https://www.comidadoamanha.org/

Projeto Comida e Cultura – https://www.comidaecultura.com/

Projeto Sustentarea – http://www.fsp.usp.br/sustentarea/

Relatório “A Sindemia Global da Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas”, Relatório da Comissão The Lancet, traduzida para o português: https://crn5.org.br/wp-content/uploads/Vers%c3%a3o-portugu%c3%aas-LANCET-2019-Sindemia_compressed-1.pdf